O amante, de Marguerite Duras

11:49:00

 


"Muito cedo foi tarde demais em minha vida [...]"

O amante trata, em síntese, de um romance entre uma jovem francesa e um comerciante chinês. Considerada uma ficção autobiográfica, a trama é narrada pela personagem principal de maneira bem particular. Logo no início, constata-se que esta já se encontra em uma idade mais avançada e pretende compartilhar uma importante fase de sua vida, aquela em que começa a amadurecer e a adquirir esse rosto que lhe acompanha no processo de envelhecimento, tal qual declarado pela mulher nas primeiras páginas. A partir de então, a obra é fragmentada em trechos que se passam no presente, no passado em que se desenvolveu o relacionamento com o "amante" e no passado que antecedeu este, isto é, sua infância e princípio da adolescência. Essas transições demandam bastante atenção do leitor e podem confundir um pouco, principalmente no começo, visto que mesmo em episódios do passado é utilizado o tempo verbal no presente, mas aos poucos compreendemos o toque especial desse formato, que nos ajuda a identificar melhor as conexões entre os acontecimentos.

Embora o título do livro seja "O amante" e a premissa consista em retratar esse momento de iniciação sexual da adolescente, é possível observar que os relatos da protagonista e os sentimentos revelados em seus discursos enfatizam mais a intensidade de seu relacionamento com outra personagem: a sua mãe. Durante muitas passagens, em situações diversas, a narradora-personagem discorre sobre a forma como a genitora parece dispensar mais cuidados e regalias ao filho mais velho, em detrimento dos demais; as expectativas que ela tem para o futuro da filha e as impressões sobre suas condutas atuais, contrárias ou incompatíveis com os projetos maternos; os comportamentos peculiares da mãe, interpretados pela filha como uma espécie de loucura.

"[...] Mas é pelo jeito como nós, os filhos, estamos vestidos, como uns infelizes, que reconheço um certo estado que às vezes já acometia minha mãe e cujos sinais de prenúncio nós, na idade que temos na foto, já conhecíamos, esse jeito, justamente, que de repente ela tinha, de não conseguir mais nos lavar, nem nos vestir, e às vezes nem sequer nos alimentar. Esse grande desânimo de viver atingia minha mãe todos os dias [...]"

Nesse contexto, disserta também sobre os recomeços da família após o falecimento do pai, em meio a condutas aparentemente desesperadas da mãe e o crescimento dos três irmãos, marcado pela cumplicidade com o irmão mais novo e uma mistura de raiva e desprezo pelo irmão mais velho. Por essas razões, entendi que a obra trata muito mais das relações familiares da protagonista, com um enfoque na relação mãe-filha, e dos reflexos desse vínculos, bem como de sua deterioração ao longo do tempo, nos demais relacionamentos construídos pela jovem, tanto com o seu amante, como com os demais personagens introduzidos no decorrer da narrativa.

Um aspecto interessante do enredo é a representação de uma comunidade alicerçada em preconceitos, essencialmente de gênero, raça e classe. A obra é ambientada na Indochina Francesa, uma região da Ásia colonizada pela França entre os séculos XIX e XX. Nesse cenário se desenrola o romance entre a protagonista, uma adolescente branca pobre, e o "amante de Cholen", um homem doze anos mais velho, chinês e rico. Ao longo do livro, a personagem comenta sobre como as pessoas a lêem como uma prostituta ou uma mulher má, interessada apenas no dinheiro do rapaz, ou uma jovem perdida, por se relacionar com um sujeito chinês e, por conseguinte, inferior. Todas essas impressões, constantes inclusive no próprio núcleo familiar desses personagens, são incorporadas pela adolescente e indicam não existir uma perspectiva de futuro para esse relacionamento.

"Desde os primeiros dias sabemos que é inconcebível um futuro em comum, então jamais falaremos do futuro [...]"

No posfácio, escrito por Leyla Perrone-Moisés, destaca-se a semelhança entre ler essa obra e "folhear um álbum de fotografias". Essa observação é bacana porque evidencia a escrita da Marguerite Duras como um dos elementos mais marcantes do livro, tanto pelo formato de narrativa escolhido, conforme exposto no início desse texto, como pela maneira utilizada para descrever os ambientes e as situações vivenciadas pela protagonista. Em alguns trechos, a sensação é que a própria personagem buscava enxergar a sua vida "de fora", como uma espectadora, para melhor relatar os acontecimentos. Um dos primeiros momentos da obra é descrito dessa forma, quando a jovem afirma que o episódio em que ela e o amante se conheceram poderia ter sido registrado em uma fotografia e, assim, passa a delinear aquela paisagem e instante tão marcantes em sua trajetória.

Essa leitura foi uma grande surpresa, pois imaginava que seria apenas o relato de um romance e encontrei muito mais do que isso. Como mencionei anteriormente, a princípio o caráter fragmentado da narrativa pode confundir, mas aos poucos a gente se acostuma e fica mais curioso para encontrar as conexões entre as diferentes etapas da vida  da protagonista que são compartilhadas nesse relato. Além da escrita da autora, também gostei muito de acompanhar esse desenvolvimento da personagem e observar como as expectativas e impressões que os outros, sujeitos próximos ou não, têm sobre uma pessoa influenciam em sua percepção de si, bem como em seu próprio sentir. Por fim, acredito que a delicada abordagem sobre o desenrolar dos dramas familiares foi o que mais me envolveu e surpreendeu. Essa é uma obra clássica curtinha, mas que fica com o leitor por algum tempo depois de finalizada a leitura.


Minha Estante #124
Título: O Amante
Autor (a): Marguerite Duras
Páginas: 112
Editora: Cosac Naify
Nota: 4/5


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