Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil, de Flávia Biroli

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Ao tratar da divisão sexual do trabalho, observa-se a contribuição desse processo na construção social da noção de gênero e seu caráter fundamental na formação de uma hierarquia entre homens e mulheres, por intermédio de uma responsabilização desigual no que tange ao trabalho não remunerado ou "doméstico". Nesse cenário, tem-se uma separação entre esferas da vida, pública e privada, conforme os tipos de tarefas exercidas. Assim, Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil demonstra como essa divisão, do trabalho e das esferas sociais, conduz a uma menor participação feminina na dimensão política. 

Dividido em cinco capítulos, o livro retrata a divisão sexual do trabalho como fio condutor para as diferentes reflexões promovidas. Inicialmente, esse processo é apresentado como base das hierarquias de gênero, haja vista que viabiliza uma exploração do trabalho feminino ao designar às mulheres atividades consideradas não produtivas e, consequentemente, não atribuídas aos homens, a exemplo dos afazeres domésticos. Ocorre, portanto, uma associação das mulheres à esfera privada, o que possui implicações no desenvolvimento da esfera pública, já que as mulheres dispõem de menos recursos para a participação política, como tempo livre e renda.

A todo momento, a autora ressalta como essa relação de opressão é modelada de acordo com as dinâmicas de raça e classe. Nesse contexto, pontua-se que a ideia de que o ambiente doméstico reduz a autonomia da mulher, enquanto a esfera pública possibilitaria a sua libertação, advém da vivência de apenas um grupo dentro de toda a categoria das mulheres, isto é, do grupo de mulheres brancas. Afinal, para mulheres negras o espaço público também é um ambiente de opressão, em razão do racismo estrutural. Ademais, salienta-se que algumas mulheres possuem condições financeiras que as permitem delegar seus encargos domésticos a outras pessoas, que geralmente são mulheres pertencentes a classes menos favorecidas. 

No capítulo Cuidado e responsabilidade, verifica-se que uma das consequências da divisão sexual do trabalho consiste no protagonismo feminino nas relações de cuidado, de modo que estas possuem um cunho político e o seio familiar configura um ambiente institucional. Nessa conjuntura, são reafirmadas as divergências nas condições das mulheres conforme suas intersecções, já que as mulheres negras tendem a assumir o encargo de cuidadoras tanto na sua família, na prática da maternidade, como em outras famílias, no exercício de um trabalho doméstico remunerado. Cabe destacar uma presunção de que a posição de empregadas domésticas ou cuidadoras ou mães é assumida voluntariamente pelas mulheres porque a priorização do cuidado seria inerente à natureza feminina, quando, em verdade, essa priorização decorre de uma expectativa social. 

Em Família e maternidade, a autora comenta sobre o forte vínculo entre a subordinação das mulheres e as relações familiares, resultante em uma espécie de tolerância da sociedade no tocante às práticas de subalternização das mulheres na família enquanto instituição, em virtude de uma despolitização dessas relações que se estabelecem em uma esfera denominada privada. Embora os ideais de domesticidade feminina e de maternidade tenham sido debatidos especialmente por um movimento feminista branco e burguês, visto que a realidade de participação das mulheres negras no mercado de trabalho contraria tais noções, esses juízos colaboram para a consolidação dos papéis de gênero, os quais reduzem a autonomia da mulher e impactam inclusive a manifestação de sua cidadania.

Nesse âmbito, são ressaltados três elementos que evidenciam o nexo entre representação social da maternidade e desigualdades sociais. A princípio, tem-se uma valoração distinta no exercício da parentalidade por homens e mulheres, com expectativas e julgamentos diferentes. Também observam-se divergências nas práticas de maternidade em razão das intersecções entre classe, raça e local de moradia, com destaque para os cotidianos de violência e conflito. Por fim, há uma maternidade compulsória respaldada na legislação que criminaliza o aborto e na burocracia que dificulta o acesso a esse direito nas hipóteses em que é assegurado. 

Considerando a proposta de repensar a separação entre público e privado, de maneira a perceber que a forma de regulação das relações privadas possui reflexos no desenvolvimento do espaço público, o capítulo Aborto, sexualidade e autonomia apresenta o entendimento de que o exercício da maternidade e do cuidado depende de um suporte do poder público, o qual se faz ainda mais urgente quando considerada a interseccionalidade. Ademais, é sublinhada a necessidade de reconhecer as assimetrias nas experiências e responsabilidades de homens e mulheres, em especial no que tange aos direitos reprodutivos e sexuais, a fim de promover uma política mais igualitária, o que envolve questionamentos quanto à origem masculina das normas jurídicas em todos os segmentos.

Para encerrar, Feminismos e atuação política retrata o fato de muitas conquistas feministas consistirem em prerrogativas meramente formais, visto que faltam condições materiais para sua viabilização, carência que se fundamenta na manutenção de estruturas patriarcais, racistas e colonialistas em nossa sociedade. Nesse sentido, salienta-se que os movimentos feministas têm utilizado vias alternativas para apresentar suas demandas devido à deficiência de sua representação nos meios políticos convencionais. Ainda, é traçado um panorama do feminismo no Brasil no passado recente, com enfoque na relevância de considerar as realidades particulares das diversas mulheres que integram o movimento, em detrimento de uma equivocada noção de universalidade. Esse trecho me recordou a última parte do livro Explosão feminista, de Heloisa Buarque de Hollanda.

A leitura me proporcionou um novo olhar sobre as questões de gênero, ao introduzir essa perspectiva pautada na análise do processo de divisão sexual do trabalho e na crítica à rígida separação entre público e privado, em uma abordagem interseccional. Depois de ler O que é interssecionalidade?, de Carla Akotirene, foi muito importante observar a aplicação dessa metodologia no debate acerca da economia de cuidado, maternidade, autonomia e participação política das mulheres. No decorrer do livro, a autora expõe diversas estatísticas que revelam os desdobramentos das intersecções entre gênero, raça e classe e nos fazem questionar a forma como têm sido trabalhadas as reivindicações pelo movimento feminista. Portanto, trata-se de uma obra bastante interessante para refletir sobre as implicações das desigualdades das relações ditas privadas na participação das mulheres na dimensão pública.

Minha Estante #122
Título: Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil
Autor (a): Flávia Biroli
Páginas: 252
Editora: Boitempo
Nota: 4/5
Leitura para o projeto Biblioteca Feminista


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