Breve história do feminismo, de Carla Cristina Garcia

19:14:00



"[...] o feminismo pode ser definido como a tomada de consciência das mulheres como coletivo humano, da opressão, dominação e exploração de que foram e são objeto por parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob suas diferentes fases históricas, que as move em busca da liberdade de seu sexo e de todas as transformações da sociedade que sejam necessárias para este fim." (p. 13).



Breve história do feminismo, como o título indica, consiste em uma síntese da trajetória do movimento feminista desde os primeiros instantes da história em que as circunstâncias de opressão da mulheres começaram a ser questionadas. Nesse sentido, a autora objetiva delinear um panorama geral do desenvolvimento do feminismo e, para tanto, divide o livro em quatro capítulos ao longo dos quais apresenta o contexto histórico e os nomes que contribuíram para a consolidação desse pensamento acerca da necessidade de uma transformação do cenário de inferiorização do feminino.

O feminismo nas origens do mundo moderno dá início a uma reflexão sobre as particularidades do mecanismo de opressão das mulheres, porquanto retrata que tanto a mulher como o escravo eram considerados inferiores, porém a inferioridade deste era concebida como uma construção social, enquanto a das mulheres era considerada um fator biológico. Dessa maneira, não haveria possibilidade de mudança da situação feminina porque esta seria decorrente da própria natureza. Nesse contexto, Christine de Pizan é introduzida como a primeira mulher escritora profissional, autora de “A cidade das mulheres”. Algum tempo depois, há o surgimento de um movimento literário dotado de um viés feminista, denominado Preciosismo. Concebido por mulheres da aristocracia e da alta burguesia no período do Antigo Regime francês, trazia como temática a defesa da igualdade entre os sexos, do direito à liberdade sexual e do direito ao acesso à educação. Para Carla Cristina Garcia, essa corrente pode ser qualificada como "protofeminismo", já que demonstra um inconformismo das mulheres com as convenções sociais e sua inferiorização, mas não propõe uma fundamentação sobre o tema. 

Em A primeira onda do feminismo, referente a meados do século XVIII, verifica-se que o acesso à educação é uma das principais reivindicações das mulheres. Nessa conjuntura, a Revolução Francesa é descrita como um momento de contraposição entre o “nascimento” do feminismo e a sua rejeição e repressão, pois o espírito revolucionário impulsionou a manifestação das mulheres para a exposição de seus projetos políticos, mas o Estado revolucionário não se mostrava aberto a uma igualdade universal efetiva. Para ilustrar, a autora salienta que  Rousseau, apesar de grande defensor da construção de um poder legítimo baseado na liberdade e na igualdade, entendia como desejável a colocação de inferioridade e exclusão da mulher. 


Nesse momento destacam-se duas obras de "tomada de consciência feminista": Declaração dos Direitos das Mulheres e das Cidadãs (1791), de Olympe de Gouges, e Reivindicação dos Direitos das Mulheres (1793), de Mary Wollstonecraft. A segunda é apresentada por Carla Cristina Garcia como trabalho responsável pelo lançamento das bases do feminismo moderno, quais sejam o tratamento igualitário entre homens e mulheres, a independência econômica e a necessidade de participação política mediante a representação parlamentar. Ademais,  são introduzidas noções para dois conceitos fundamentais do feminismo: gênero, como uma construção a partir da repressão nas relações de poder masculino e aprendizagem social, e discriminação positiva ou ação afirmativa, enquanto ferramenta de “compensação” em decorrência da inferiorização à qual foi submetida a mulher.



Em A segunda onda, constata-se que somente no século XIX, com inspiração em outras lutas desenvolvidas na época, o feminismo se impõe na qualidade de movimento social com identidade e organização próprias, com cunho internacional e destaque para as pautas de emancipação jurídico-econômica da mulher. Outro aspecto interessante dessa fase se refere ao fato de que a separação da sociedade em dois estratos principais, burguesia e proletariado, também transparece no feminismo, como uma espécie de começo da formação de suas vertentes em decorrência dessa percepção de vivências distintas. A autora destaca o movimento sufragista, advindo de uma organização feminina em prol da luta abolicionista nos EUA, a qual é apontada como causa para o reconhecimento pelas mulheres de sua própria condição de oprimida:  enquanto os escravos era oprimidos pelo sistema econômico escravagista, as mulheres eram oprimidas pelo sistema social patriarcal. Nesse trecho, fui surpreendida pela informação de que o primeiro romance antiescravista norte-americano foi escrito por uma mulher, Harriet Beecher Stowe, autora de A cabana do pai Tomás. 



O texto considerado fundador do movimento sufragista nos EUA é a Declaração de Seneca Falls ou Declaração dos Sentimentos (1848), escrito por Elizabeth Stanton. Segundo Carla Cristina Garcia, a legitimidade política desses escritos deriva de sua inspiração na Declaração da Independência, com o apelo à universalização dos valores democráticos e liberais, o que revela uma percepção comum de que não haveria qualquer possibilidade de iniciativa originalmente feminina, de que mesmo o feminismo deve ser sempre validado por um pensamento masculino. Essa ideia também é observada quando se atribui maior valor ou destaque especial a obras “feministas” escritas por homens, como pode ser percebido em um trecho posterior no qual é retratada a relevância dos trabalhos de John Stuart Mill e Harriet Taylor. Não obstante o primeiro tenha contribuído para a luta das mulheres, ele não era favorável à participação feminina no trabalho e utilizava um argumento econômico relacionado à concorrência para camuflar seu posicionamento machista no tocante a esse assunto, de modo a evidenciar que o suporte masculino ao feminismo nunca é completo, pois sempre impõe limites às conquistas femininas.

Tendo em vista que o movimento era composto basicamente por mulheres da classe média, privilegiadas com o acesso ao mínimo de educação, suas pautas principais eram o direito ao voto e os direitos educativos. Uma das mulheres que não correspondia a esse parâmetro burguês liberal do movimento sufragista era Sojourner Truth, escrava liberta que iniciou uma proposta interseccional ao retratar a dupla opressão e exclusão sofrida pelas mulheres negras, em virtude dos marcadores de gênero e raça. Ainda, tem-se a apresentação da constituição inicial de um feminismo socialista, com ressalva para o fato de que a opressão em razão do gênero era majoritariamente interpretada como uma implicação da opressão decorrente dos fatores econômicos, motivo pelo qual cabia às pensadoras dessa etapa, como Flora Tristan e Alexandra Kollontai, estabelecer críticas a essa concepção.
Por fim, o capítulo A terceira onda demonstra como o feminismo se desenvolveu após o período de guerras, com destaque para O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, e A mística feminina, de Betty Friedan. Na primeira obra, reitera-se o entendimento de que os aspectos biológicos só assumem a qualidade de fundamento para a distinção entre os sexos e a inferiorização das mulheres devido aos juízos de valor que lhes foram atribuídos ao longo do tempo a partir da cultura, a qual por sua vez foi desenvolvida pelos homens; tem-se, então, a noção de gênero enquanto construção social. Já na segunda é trabalho especialmente o conceito de domesticidade obrigatória, que seria a mística feminina, referente a esse aprisionamento da mulher na esfera privada mediante a atribuição dos papéis de mãe e esposa às mulheres como uma resposta dos homens ao sufragismo e a incorporação feminina à esfera pública durante a Segunda Guerra; a mística seria caracterizada pela passividade sexual, submissão ao homem e destinação à criação dos filhos.
Nesse livro, Carla Cristina Garcia consegue cumprir com o objetivo ao qual se propõe, já que nos apresente realmente uma linha do tempo acerca do desenvolvimento do feminismo, com uma contextualização histórico-social, pequenas biografias de pensadores que contribuíram para o movimento, bem como explicações e trechos de suas obras. Dessa forma, podemos anotar diversas referências para posteriores leituras sobre cada pauta que nos é indicada. Por outro lado, determinadas abordagens sobre temáticas complexas soam muito superficiais, a exemplo da reta final da terceira onda feminista, quando a autora retrata diversas vertentes do feminismo. 

Ao tratar sobre os feminismos liberal, radical, da diferença, cultural, essencialista e institucional, são exploradas noções básicas de cada corrente e apontadas algumas autoras que trabalham esses conceitos, porém a extensão do livro não permite que sejam explicadas exatamente as propostas das vertentes. Assim, nós finalizamos a leitura desse trecho com uma sensação de confusão e de que aquele material não é suficiente para que seja possível gerar uma grande identificação com algum desses vieses do movimento. 

Contudo, trata-se de uma questão já esperada, considerando que são apenas 120 páginas e traçar um panorama geral é a verdadeira proposta da autora. No todo, Breve história do feminismo é uma leitura muito válida, especialmente por conseguir trabalhar diversos momentos do pensamento feminista, de maneira a demonstrar a sua evolução em conformidade com o quadro social de cada período. Assim, é um livro bem interessante para quem busca uma introdução ao tema e um tipo de guia para buscar conhecer obras referentes a pautas mais específicas do movimento. 

"[...] Quando as mulheres são as protagonistas, o mundo, o que cremos conhecer, é outro." (p. 110).

Minha Estante #118

Título: Breve história do feminismo

Autor (a): Carla Cristina Garcia
Páginas: 120

Editora: Claridade

Nota: 4/5
Leitura para o projeto Biblioteca Feminista







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