O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir

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"[...] A partir do momento em que se torna livre, a mulher não tem outro destino senão aquele que ela cria livremente [...]" (p. 260)

O Segundo Sexo é um dos grandes clássicos da teoria feminista. Dividida em dois volumes, a obra de Simone de Beauvoir traz um panorama bastante amplo dos fatos e mitos os quais envolvem o gênero feminino e os papéis que lhe foram atribuídos ao longo da História, bem como trata das experiências vividas pela mulher diante de tais construções sociais. Antes de dar início à sua abordagem, a autora propõe uma reflexão acerca de diferentes relações de opressão, a fim de identificar a submissão feminina ao homem nesse quadro, e comenta brevemente sobre lugar de fala e a participação masculina no movimento feminista, porquanto "[...] mesmo o homem mais simpático à mulher nunca lhe conhece bem a situação concreta [...]" (p. 23).

O primeiro volume é composto por três partes. Em Destino, Beauvoir apresenta perspectivas da Biologia, da Psicanálise e do materialismo histórico com o propósito de questionar argumentos fundamentados nesses estudos para consolidar pensamentos equivocados sobre a mulher, especialmente no quesito sexualidade. Por intermédio de dados biológicos, como os processos de formação dos gametas, evidencia que há uma maior subordinação da fisiologia feminina à espécie, mas não à fisiologia masculina, de modo que não há justificativa para uma hierarquia entre os sexos. 

No tocante à esfera psicanalítica, verifica-se uma crítica ao caráter machista das teorias freudianas, visto que essas utilizam apenas a libido masculina como base, identificam todos os comportamentos femininos como uma imitação dos masculinos e, assim, incorporam a ideia da mulher como Outro. Ainda, é apontada a superficialidade das teorias marxistas ao tratar da opressão feminina como decorrência somente da sobrevalorização da propriedade privada. Nesse sentido, a autora esclarece que a análise exclusiva de cada uma dessas áreas é insuficiente para a compreensão da opressão da mulher; para tanto, faz-se necessário adotar uma visão existencialista.


Em História, são distinguidos cinco momentos do desenvolvimento das sociedades. Na pré-história, a maternidade tornava as mulheres dependentes da proteção masculina e restringia a elas a função de manutenção da espécie. Essa relação entre mulher e natureza a partir do conceito de fertilidade ocasionou uma intensa presença feminina na mitologia, endeusamento o qual provocou um distanciamento entre os sexos, responsável por dificultar uma posição de igualdade entre eles. 

Nos contextos clássicos de Grécia e Roma, observa-se uma transformação da estrutura opressora: a mulher deixa de ser submetida meramente ao núcleo familiar e passa a estar à mercê também do Estado. Já durante as Idades Média e Moderna, tanto o cristianismo como o feudalismo, marcados pelas ideias de submissão matrimonial e hierarquia do sistema feudal, atuaram contra a emancipação feminina. Somente na contemporaneidade, mais precisamente a partir da Revolução Industrial, começam a surgir discussões sobre as taxas de natalidade e os métodos contraceptivos, além da luta pelo direito ao voto por meio do movimento sufragista. A autora destaca, por fim, as singularidades pertinentes ao feminismo na Alemanha e na URSS durante o século XX. 

Em Mitos, Beauvoir discorre sobre a presença do gênero na iconografia e na literatura e sobre a construção da mulher socialmente a partir expectativas e projeções masculinas ilustradas pelos papéis de misericordiosa, musa e princesa a ser salva constantemente atribuídos à mulher. Nesse segmento, apresenta crenças e costumes relacionados à menstruação, à virgindade, ao ato e aos órgãos sexuais, entre outros tópicos, propagados para tornar a mulher um ser obscuro, e tenta explicar, com base no Existencialismo, o porquê dessa mística em torno do feminino. Para tanto, são trabalhados os mitos concebidos nas obras de Montherlant, D. H. Lawrence, Claudel, Breton e Stendhal, os quais os quais são reconhecidos como vias para consolidar a mulher enquanto Outro. 



O segundo volume, por sua vez, divide-se em quatro partes. Formação trata sobre os estágios vivenciados pela mulher até a fase adulta, a fim de explorar o processo gradual de sujeição e inferiorização do feminino. Beauvoir destaca que, durante os primeiros anos de vida, meninos e meninas possuem as mesmas ânsias e necessidades, porém a intromissão de terceiros no seu desenvolvimento para moldar suas personalidades e condutas em conformidade com os papéis de gênero conduz ao início da situação de desigualdade, a qual é reforçada por meio dos tabus relacionados à puberdade e acaba por intensificar o sofrimento característico dessa transição para a adolescência. 

Nesse trecho, a autora foca no argumento de que a mulher não é inferior, mas aceita essa ideia de inferioridade imposta pela sociedade desde os ensinamentos de sua infância, os quais lhe provocam um temor quanto à chegada da vida adulta. Ademais, são exploradas as angústias sentidas pelas jovens em relação ao ato sexual, visto que esse seria o marco transitório para sua verdadeira submissão e haveria uma ausência de reciprocidade entre os parceiros em decorrência dos caracteres patriarcais ali envolvidos. Por fim, há uma abordagem acerca da homossexualidade, a qual sofre influência dos equívocos do âmbito social (como a ideia de que a orientação sexual seria uma escolha) e dos questionamentos na área de gênero e sexualidade, bem como carece de uma maior propriedade. Não obstante, a autora comenta aspectos importantes como a maior reciprocidade entre casais homoafetivos em virtude da posição de igualdade em que os indivíduos se encontram.

Em Situação, como a denominação sugere, Beauvoir trabalha as condições em que pode ser identificada a mulher durante sua fase adulta. Nesse sentido, o casamento é apresentado como um contrato, o qual possui muito mais uma natureza socioeconômica do que romântica, e há uma abordagem sobre o papel da mulher dentro da sociedade conjugal, especialmente como "dona de casa" e mãe. É válido mencionar as semelhanças percebidas entre a mulher casada e as prostitutas ou cortesãs: ambas estão presas a uma instituição e subordinadas ao homem, apesar das circunstâncias distintas. No tocante à maternidade, discute-se o aborto sob a perspectiva feminina (conflitos internos, sofrimento físico e psicológico), em detrimento do posicionamento da Igreja e dos homens quanto à ilegalidade do ato, e as implicações biológicas e sociais decorrentes da gestação.

A autora destaca a "vida social" e sugere sua maior relevância para as mulheres porque essas não possuem espaço na conjuntura política tampouco na econômica. Ao comentar sobre os bailes e eventos que compõem esse cenário, são mencionados os padrões de beleza e de comportamento impostos às mulheres. Cabe salientar a abordagem acerca da propagada noção de uma rivalidade feminina: para Beauvoir, a amizade entre mulheres representa uma espécie de partilha de uma realidade de submissão, de modo a gerar uma forte cumplicidade, e evidencia que tudo na vida das mulheres acaba por ser direcionado ao universo masculino devido à sua condição subalterna. Essa subalternidade seria encerrada somente quando a mulher deixa de ser eficiente para a sociedade, isto é, durante a velhice, pois seus afazeres conjugal e maternal já terão sido esgotados.

Em Justificações, há uma tentativa de compreender três figuras femininas: a narcisista, a apaixonada e a mística. Essa parte, bem como outros trechos da obra, é repleta de relatos os quais permitem essa investigação. Sob esse panorama, observa-se o narcisismo como uma via encontrada pelas mulheres para lidar com a falta de relevância dos papéis os quais lhe foram atribuídos; a paixão seria uma extensão do narcisismo, porquanto a apaixonada visa se salvar por intermédio do amor, mas acaba por se renegar ao abandonar sua busca por sucesso e independência e se converter em um objeto do outro; e o místico seria uma ramificação do amor idólatra pautado na fusão do homem amado com Deus.

A última parte da obra é denominada A caminho da libertação. Para finalizar, Beauvoir ressalta o abismo existente entre a igualdade formal e a igualdade material entre os gêneros, o qual demonstra as dificuldades do feminismo mediante a contraposição entre suas importantes conquistas para a emancipação feminina e suas falhas em concretizá-las dado à manutenção da estrutura social. Nesse contexto, a autora revela a mulher enquanto um produto do meio patriarcal no qual está inserida, o qual lhe impossibilita criar qualquer coisa para a humanidade, visto que sua única bagagem é a própria condição inferior.


A leitura de O Segundo Sexo foi um grande desafio, tanto pela escrita (comecei a ler antes de ingressar na faculdade, então não estava acostumada com um estilo mais acadêmico) como pela quantidade de informações tão relevantes. O primeiro volume, apesar de menor, pode ser mais complicado em razão do apanhado de dados biológicos e psicanalíticos apresentados, o qual exige primeiramente uma compreensão das teorias em questão para que depois haja uma percepção das críticas feitas a elas. Já o segundo tem uma dinâmica mais fluida porque foca nas experiências da mulher na sociedade, o que proporciona uma maior identificação.

Essa identificação entre leitora e situações retratadas irá ocorrer em algum momento, pois a Simone de Beauvoir conseguiu reunir diversos estágios e episódios da vivência feminina nessa sociedade cuja estrutura patriarcal é tão difícil de ser desconstruída não obstante nossos esforços. Ao apresentar o viés existencialista, a autora nos faz pensar especialmente na origem dessa desigualdade entre os gêneros e na interiorização dessa inferioridade pelas mulheres como consequência das constantes reiterações desses papéis de subordinação que nos foram impostos em todos os períodos históricos. Tal incorporação do caráter inferior da mulher em relação ao homem, manifesta involuntariamente diversas vezes em decorrência desse machismo enraizado em nossa cultura, revela uma das razões pelas quais o movimento feminista encontra tantas críticas e oposição.

O Segundo Sexo foi o meu primeiro contato com a literatura clássica feminista e foi uma experiência marcante. Acredito que essa é uma leitura bem interessante para todas as mulheres, não apenas as quais já se identificam como feministas e buscam se aprofundar no movimento, mas todas. Essa sugestão advém da riqueza de informações contidas nessa obra, as quais nos permitem compreender um pouco desse sistema no qual estamos inseridas e cuja estrutura nos impõe papéis para consolidar uma falsa inferiorização de quem somos quando nos identificamos como mulheres. Essa não é uma obra perfeita; não concordei com alguns pontos apresentados, acredito que existem alguns deslizes ocasionados em virtude das próprias experiências da autora e influenciados pelo próprio meio social no qual ela estava situada. Todavia, tais aspectos não retiram o seu mérito e essa é uma leitura bastante válida, recomendo muito.

"[...] É muito difícil para uma mulher agir em nível de igualdade com o homem enquanto essa igualdade não for universalmente reconhecida e concretamente realizada." (p. 361)

Minha Estante #117
Título: O Segundo Sexo
Autor (a): Simone de Beauvoir
Páginas: 936
Editora: Nova Fronteira
Nota: 4/5
Leitura para o projeto Biblioteca Feminista






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