A hora da estrela, de Clarice Lispector

14:06:00


"[...] Estou me interessando terrivelmente por fatos: fatos são pedras duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo." (p. 97)


A hora da estrela, publicado no mesmo ano em que Clarice Lispector veio a falecer, ganhou em 2017 uma edição comemorativa de 40 anos. Essa nova versão proporciona uma experiência sensacional para o leitor, a qual se torna ainda mais especial para aquele que realiza uma releitura, como foi o meu caso. Além do texto propriamente dito, há uma crônica referente ao momento de encontro com os manuscritos do livro, alguns dos manuscritos originais e seis ensaios, os quais acabam por abordar o trabalho da Clarice como um todo. Assim, é possível verificar suas características já consagradas e perceber a sua capacidade de propor inovações mesmo depois de tantos escritos. 

A princípio, temos a história de Macabéa, uma jovem nordestina a viver no Rio de Janeiro. Ciente de sua insignificância e de modo a contrariar as expectativas alheias, a moça parece feliz em meio a um universo em que tudo é diferente do que conheceu em sua cidade natal na qual morava com a tia. Todavia, o livro apresenta uma narrativa paralela a essa: a história de Rodrigo S. M., o autor responsável por compartilhar a vida de Macabéa. Nós acompanhamos, portanto, as jornadas de dois protagonistas por intermédio de duas narrativas as quais se entrelaçam e são construídas de maneira brilhante.

Clarice cria um personagem para assumir o seu papel com a justificativa de que tal trama deveria ser explorada por um homem, a fim de não demonstrar piedade em relação à nordestina. A partir desse ponto, Hélène Cixous (autora do ensaio "Extrema fidelidade") comenta sobre a questão de gênero, a qual nós não identificamos de imediato ao pensar nessa obra. Em relação a esse aspecto, Simone de Beauvoir afirma em O Segundo Sexo que o papel social da mulher sempre foi concebido nessa condição de "outro". Porém, a meu ver, o elemento da alteridade em A hora da estrela detém maior conexão com as demandas da construção da própria narrativa, a necessidade de contar a trajetória de Macabéa enquanto um "outro" no sentido de realmente fixar um olhar sobre outra pessoa e se perceber no lugar dela.


Nesse viés, o grande objeto do livro é o elo estabelecido entre Rodrigo S. M. e Macabéa durante o processo de escrita da história desta.  Antes de adentrar no cotidiano da protagonista, o autor divaga sobre Deus, a existência, o tempo, o estado das coisas e, especialmente, o potencial das palavras. Essa abordagem acerca da linguagem permeia todo o texto e se segue de forma a nos fazer reparar em como as palavras são capazes de criar realidades, aliás, de nos permitir perceber o real. Todas as interrupções feitas são pertinentes a essa questão, na medida em que o autor comenta sobre a escolha dos vocábulos adequados à simplicidade da jovem nordestina, a empatia desenvolvida por ele, as pausas as quais precisa durante a escrita porém não consegue concluir por estar demasiado envolvido com a personagem a qual tem descrito. 

Ainda, Nádia Batella Gotlib (autora do ensaio "Quando o objeto, cultural, é a mulher") identifica como vozes presentes na obra o narrador, Macabéa e a própria Clarice. Sob esse prisma, nós observamos um domínio da linguagem e a sua consequente capacidade de transmitir perspectivas por meio de palavras, as quais se tornam próprias de cada drama particular cujos contextos revelam muito mais do que suas estruturas linguísticas aparentam declarar. Quanto a esse ponto, a escritora sinaliza essa típica entrega da Clarice por intermédio das protagonistas de seus escritos.  

Importante dizer que as reflexões proporcionadas ao leitor não advêm apenas dos comentários feitos por Rodrigo S. M., pois cada fala de Macabéa nos faz pensar bastante sobre a vida. Afinal, ela também lida diretamente com o poder da linguagem em seu trabalho de datilógrafa, no qual descobre palavras bonitas mas não consegue encaixá-las exatamente na sua realidade. Essa personagem concebida por Clarice é definitivamente única e acompanhar a sua singularidade é uma experiência simultaneamente triste e bela. A hora da estrela é mais uma daquelas publicações de poucas páginas, mas que carregam uma riqueza enorme. 

"Se é certo que cada uma das personagens desenha um movimento na narrativa, o nó da questão não está em cada uma das histórias, mas na rede de relações que se estabelece entre elas; isto é, no confronto de narrativas e de suas respectivas modalidades de linguagem como diferentes produtos culturais [...]" (p. 186).



Minha Estante #116
Título: A hora da estrela
Autor (a): Clarice Lispector
Páginas: 226
Editora: Rocco
Nota: 5/5


Já leram A hora da estrela? Me contem nos comentários como foi a experiência!
Beijos e até o próximo post!

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